O paradoxo de ouvir sem escutar
- Ronilson Pelegrine
- há 33 minutos
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Caso concreto em análise: O IRDR n. 0804673-43.2025.8.22.0000 e as ditas controvérsia sobre tarifas bancárias
Um exemplo contemporâneo da aplicação do IRDR e de sua relevância para o direito do consumidor é o IRDR n. 0804673-43.2025.8.22.0000, atualmente em tramitação no Tribunal de Justiça do estado de Rondônia. Este incidente tem por objetivo central uniformizar o entendimento das Câmaras Cíveis sobre a espinhosa questão da "Legalidade ou não da cobrança de tarifas bancárias por pacote de serviços, quando ausente contrato físico específico, mas comprovada a utilização regular dos serviços pelo consumidor".
A controvérsia, que gera significativa insegurança jurídica e decisões divergentes em primeira e segunda instâncias, desdobra-se em vários aspectos fundamentais que serão submetidos à análise do colegiado: - Existência de Contratação: Se a mera ausência de um contrato físico assinado pelo consumidor é suficiente para impedir a cobrança da cesta de serviços, ou se outros elementos podem configurar a aceitação tácita. - Dever de Informação: Se a instituição financeira, ao não fornecer um contrato físico claro e específico, viola seu dever fundamental de informar o consumidor, configurando uma falha na prestação do serviço. - Consequências da Cobrança Indevida: Se, não sendo reconhecida a contratação formal, é cabível ao consumidor pleitear a repetição do indébito de todos os valores pagos, bem como uma indenização por danos morais em virtude da cobrança abusiva. - Dano Moral por Descontos Ínfimos: Se os chamados "descontos concedidos", quando de valor insignificante perante a tarifa original, são capazes de afastar o caráter abusivo da cobrança ou se, ao contrário, a própria prática pode ensejar indenização por dano moral por configurar uma conduta lesiva. - Teoria da Aparência e Aceitação Tácita: Se a mera utilização dos serviços bancários pelo consumidor, sem uma oposição formal às cobranças, por si só, configura uma relação contratual tácita que autoriza a instituição financeira a efetuar os débitos.
Este caso paradigmático ilustra com perfeição a finalidade do IRDR. Ao submeter essas questões complexas e recorrentes a um julgamento unificado, o tribunal não apenas busca pacificar a jurisprudência interna, mas também estabelece um parâmetro de segurança jurídica para milhões de relações de consumo, definindo os limites da atuação dos bancos e os direitos dos correntistas em um dos temas mais sensíveis do sistema financeiro. A tese jurídica que será firmada terá eficácia erga omnes, orientando a solução de todos os casos idênticos que tramitam naquela esfera de jurisdição, o que realça a importância de um debate amplo, democrático e contraditório, incluindo a participação de amicus curiae como o "Escudo Coletivo".
A tramitação do IRDR n. 0804673-43.2025.8.22.0000, que discute a legalidade da cobrança de tarifas bancárias sem contrato físico, representa um momento crucial para o Direito do Consumidor brasileiro. No entanto, os contornos do processo e a lógica que parece orientá-lo levantam um alerta grave: existe um risco real de que o instrumento concebido para pacificar jurisprudência e garantir isonomia esteja sendo instrumentalizado para flexibilizar direitos fundamentais e consolidar uma visão que privilegia os grandes litigantes do sistema financeiro.
O cerne da crítica reside na aparente contradição entre a finalidade do IRDR e a condução que pode levar a um esvaziamento material da proteção consumerista. A relação bancária é, por definição legal e jurisprudencial, uma relação de consumo hipervulnerável. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) ergueu-se justamente sobre o pilar da assimetria incontornável entre as partes, impondo ao fornecedor ônus informativos e deveres de cuidado reforçados.
Ao colocar em discussão se a "mera utilização dos serviços configura aceitação tácita" das tarifas, o IRDR corre o perigo de normalizar e juridicizar uma prática que ignora a realidade fática. Para o consumidor comum, abrir uma conta ou utilizar um serviço bancário é um ato de necessidade, não de livre e informada negociação. A suposta "aceitação tácita" muitas vezes ocorre em um ambiente de absoluta falta de alternativas e de compreensão sobre os complexos encargos financeiros. Validar essa lógica significa substituir o dever objetivo de informar do banco por um dever subjetivo de compreender e contestar do consumidor, invertendo o ônus que a lei expressamente impõe.
Mais preocupante é a perspectiva de que descontos ínfimos possam ser considerados suficientes para afastar o dano moral. Tal entendimento, se adotado, banalizaria a função punitiva e pedagógica da indenização, permitindo que instituições financeiras operem em uma zona cinzenta de cobranças questionáveis, sabendo que a eventual condenação seria mitigada por benefícios marginais. É a monetização da violação de um direito fundamental – a clareza e a transparência nas relações de consumo.
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR)?
A introdução do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) no ordenamento jurídico brasileiro pelo Código de Processo Civil de 2015 não foi um evento isolado, mas sim o ápice de uma evolução legislativa voltada a enfrentar a massificação de litígios. Sua origem remonta a um diagnóstico claro: a insuficiência do sistema artesanal de julgamento para causas idênticas, que gerava insegurança jurídica e ofensa ao princípio da isonomia.
Inspirado, em sua concepção inicial, pela sistemática alemã de casos de massa (Musterverfahren), implantada de forma experimental em 2005 para litígios no mercado de capitais, o modelo brasileiro logo se mostrou distinto e mais abrangente. Enquanto o sistema alemão restringia-se a um número mínimo de dez ações de acionistas, o IRDR brasileiro nasceu como instituto definitivo, aplicável a uma gama variada de demandas, sem exigência de um quantitativo mínimo processual e limitando-se a questões unicamente de direito.
No entanto, a verdadeira raiz do IRDR está profundamente ligada à Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2004), que instituiu a Súmula Vinculante e introduziu o requisito da repercussão geral para os recursos extraordinários. Esse foi o primeiro passo para a criação de um "sistema de precedentes" no Brasil. Posteriormente, as Leis nº 11.418/2006 e nº 11.672/2008 trouxeram, respectivamente, os regimes de recursos repetitivos para o Supremo Tribunal Federal (STF) e para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), consolidando uma técnica de julgamento de causas idênticas no âmbito dos tribunais superiores.
O IRDR, portanto, surge formalmente para preencher uma lacuna crucial: levar a técnica de uniformização para as instâncias ordinárias (Tribunais de Justiça e Regionais), resolvendo o problema na sua origem, ou seja, no primeiro grau de jurisdição, onde as demandas repetitivas proliferam. Ele representa uma ampliação "para baixo" do sistema dos recursos repetitivos, completando um regime integrado de tratamento de casos repetitivos. No entanto, é justamente nesse momento crucial – ao trazer a uniformização para a base do sistema – que o instituto revela seu duplo potencial: pode ser um instrumento de pacificação social ou um mecanismo de cristalização de injustiças.
Quando aplicado a litígios de massa que envolvem relações assimétricas, como os conflitos de consumo contra o sistema financeiro, o IRDR pode ser instrumentalizado para a racionalização da violação de direitos. A busca pela "eficiência processual" e "segurança jurídica" – princípios nobres em tese – corre o risco de ser apropriada pelos grandes litigantes recorrentes para legitimar, em larga escala, práticas questionáveis. Ao uniformizar um entendimento que flexibiliza deveres fundamentais de informação e transparência, o que se concretiza não é a verdadeira isonomia, mas sim uma "igualdade formal" que consagra a vantagem estrutural de uma das partes. Dessa forma, o IRDR, embora uma inovação legislativa essencial, consolida-se em um terreno ético delicado: sua operação pode, paradoxalmente, esvaziar materialmente a proteção do consumidor em nome de uma abstração da segurança jurídica que, na prática, beneficia quem já detém poder econômico e informacional.
A Admissão Silenciosa do Amicus Curiae
O despacho que admitiu o INSTITUTO “ESCUDO COLETIVO” como amicus curiae no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR em questão é um ato que, sob o manto da discricionariedade do relator, encapsula uma contradição processual profundamente preocupante. Ao mesmo tempo em que se reconhece a importância e a experiência singular do instituto para trazer uma "visão humanizada" ao debate sobre os cartões consignados e a hipervulnerabilidade dos consumidores, nega-se a essa mesma voz a oportunidade de ressoar no plenário onde a causa será decidida. Trata-se de uma inclusão paradoxal: o amicus foi admitido para calar.
A fundamentação do relator, ancorada no art. 138, § 2º, do CPC/2015 e em jurisprudência do STJ, alega a "natureza eminentemente jurídica da controvérsia" e o "objetivo de evitar tumulto processual" para justificar a limitação da atuação da FEBRABAN e do próprio "Escudo Coletivo" a manifestações escritas, vedada a sustentação oral. Tal raciocínio, embora formalmente válido, revela-se um exercício de autoridade que esvazia o próprio espírito da participação de um amicus curiae.
A figura do amicus curiae não é um mero depositário de memoriais. Sua função primordial é enriquecer o debate, oferecendo perspectivas, contextos e argumentos que podem escapar às partes tradicionais. A sustentação oral, é momento ímpar para destacar nuances, responder a questionamentos agudos dos julgadores e, sobretudo, personalizar a tese, dando-lhe um rosto e uma força persuasiva que a fria letra de um documento nem sempre consegue transmitir. Impedir essa pronúncia, especialmente em uma temática que gira em torno da "hipervulnerabilidade", é negar a humanização que se diz buscar.
O agravante é que a sessão é virtual. Na sessão virtual, a exclusão é total e absoluta. As partes não só não falam, como não ouvem, não veem, não participam. O processo torna-se uma troca de documentos em um sistema eletrônico, decidido em uma câmara fechada, onde a dialética – alma do processo jurisdicional – é sufocada em nome de uma suposta "eficiência" que se confunde com a mera celeridade.
Há, portanto, um profundo descompasso entre o gesto de abrir as portas para a sociedade civil organizada e o ato simultâneo de trancar a porta do debate. Se a contribuição do amicus curiae é tão relevante a ponto de justificar sua admissão, por que sua voz não é digna de ser ouvida? Que "tumulto processual" pode gerar a fala organizada e técnica de um amicus, previamente habilitado, em uma sessão de julgamento que, por natureza, já é mais controlável?
Conclui-se que a decisão, ao negar a sustentação oral, pratica uma contradição performática. Ela sinaliza virtude ao incluir um defensor dos vulneráveis, mas falha em sua essência ao silenciá-lo. A mensagem que fica é a de que a participação social é bem-vinda apenas como um adendo, um documento a ser arquivado, e não como uma voz viva a ser integrada ao diálogo judicial. No fim, o "Escudo Coletivo" foi admitido para ser uma figura de retórica no processo, e não um verdadeiro interlocutor. E, nesse silêncio imposto, a própria Justiça, que se pretende plural e democrática, vê-se empobrecida.
Enfim, não é difícil antever que a decisão final deste IRDR já está escrita nas entrelinhas do processo. A mera submissão da hipervulnerabilidade do consumidor à lógica fria da suposta "aceitação tácita" revela o veredicto em gestação: a transformação de um direito fundamental em uma questão contábil, onde a "eficiência" do sistema financeiro sempre sairá vitoriosa sobre a dignidade do correntista consumidor. O tribunal, assim, não decide; apenas ratifica o poder de quem já dita as regras do jogo.
